20.12.24

Will Ferreira: o artista por trás de Híbrido

Conheça o responsável pelos desabafos coloridos pelos muros de Sorocaba

Mural na Rua Souza Pereira, Agenda Sorocaba.

Em uma galáxia, entre nebulosas e estrelas, flutua uma figura em forma humana, com braços e pernas mecânicos, que lembra um ciborgue e usa uma máscara em seu rosto, coberta com espinhos. Junto dele, um “homem invisível” com todo seu corpo coberto por roupas, tênis e luvas e na sua cabeça um chapéu com óculos grandes, como um aviador. Ambos esticam seus braços em direção a uma grande coroa dourada e vermelha, mostrando um objeto de desejo ou conquista para eles. Formando um cenário espacial de disputa e ambição entre os personagens, essa cena acontece no centro da cidade de Sorocaba, na rua Souza Pereira, no muro da sede da Secretaria da Cultura do município. A pintura tem tons predominantemente escuros, contribuindo para uma sensação de profundidade e mistério no ambiente cósmico. Em uma rua movimentada da cidade, em frente ao Palacete Scarpa, é difícil um sorocabano nunca ter visto essa obra.


Híbrido, o personagem meio humano e meio robô de pele esbranquiçada, faz parte do cenário urbano. Aparecendo normalmente curvado, magro e preso a artifícios tecnológicos, representando o descuido humano com a natureza e a escravidão moderna. Os muros trazem uma narrativa que representa a sociedade atual.

O artista Will Ferreira é o responsável por colorir estes muros da cidade. Para entender a origem do estilo tão original e carregado de significados do artista, vale a pena voltar ao início de sua trajetória na arte. 

Nascido em Sorocaba, Will foi um dos pioneiros no grafite da região, iniciando na arte aos 15 anos, por influência da mãe artesã e com inspiração nas histórias em quadrinhos que lia. Depois de 20 anos nessa trajetória, o artista encontrou seu estilo pessoal nas ruas e mantém sua originalidade por onde passa. O personagem Híbrido está em todas as suas obras. Reconhecido de longe, com cores fortes e emoções contidas na arte, quem olha o grafite já sabe: o autor é Will Ferreira.

Will Ferreira em seu ateliê. (Foto: Laura Porto)

Orgulhoso das raízes sorocabanas, Will se liga à memória de seu avô, que foi o primeiro maquinista da locomotiva 58, a famosa Maria Fumaça. Conectando o sobrenome da família, a estrada de ferro e a sua arte, ele carrega o ferro como um dos principais elementos de suas obras.

Híbrido reflete as emoções por trás de seu autor, que passou por momentos turbulentos em sua vida. O artista deixa claro que, quem observa com cuidado, consegue enxergar todos os seus traumas a partir do seu trabalho.

Para além dos murais a céu aberto, o artista também pinta telas, e começou em 2018 a fazer esculturas, mantendo sua autenticidade e narrativa, reutilizando as latas de spray como cenário. Mais tarde, recorreu a uma impressora 3D para as produções de seus personagens, imprimindo pedaços do corpo e montando-os em seguida. Sua arte já atravessou diversas fronteiras para além da sua cidade natal, porém, o artista não sente amparo vindo dos órgãos municipais de Sorocaba em comparação a outras cidades da região, que investem em projetos culturais apoiando os artistas e, consequentemente, o turismo do município.

Escultura: piada em lata. (Foto: Divulgação)

O artista, que possui uma trajetória consolidada na cidade, está sem grafitar desde o começo de 2024. Um dos motivos para essa ausência, é o incomodo que Will sente atualmente com a cena local. Segundo ele, iniciantes no grafite vem para Sorocaba e oferecem seus trabalhos por um valor baixo, e os contratantes, visando economizar, optam por contratar os profissionais mais baratos, independente de conceito, originalidade ou valorização do artista daqui. Muitas vezes, esse “menor preço” é substituído inclusive pelo trabalho gratuito – tipo de oferta que Wiil já recebeu diversas vezes, inclusive de órgãos municipais.

“Eu que introduzi o mercado do grafite em Sorocaba, porque eu fui o primeiro a começar a vender. Os meninos que estavam aqui não vendiam, eles faziam e falavam que era por amor à cultura hip-hop, eu já cheguei quebrando, falei ‘mano, eu faço por dinheiro’ porque quando eu vou pagar minha conta não posso pagar com amor.”

Em 2014, Will Ferreira e Michel Japs, se juntaram em um projeto chamado “Fite Arte”, que tinha como propósito promover a produção artística do grafite alinhada às demandas do mercado. A iniciativa atendeu diversas instituições interessadas em incorporar a linguagem do grafite em seus espaços. Assim, as obras de Will e Japs vão além dos muros da cidade, marcando presença em ambientes internos de empresas, comércios, centros educacionais e culturais, sempre com trabalhos autorais. De acordo com Michel “é uma bandeira do Will, prezar pelos trabalhos autorais e não fazer o comercial, seguimos firme nisso e deu muito certo por 10 anos, é uma grande vitória, sou grato por tudo que conseguimos fazer”.

Michel Japs e Will Ferreira. (Foto: Divulgação)

Michel fala sobre a parceria: “ele viu em mim, assim como eu vi nele, essa oportunidade de nos ajudarmos” e reforça o quanto pôde aprender com a troca de conhecimentos que acontecia em equipe. Will com uma bagagem técnica e Michel com mais saberes digitais. O duo artístico chegou ao fim em setembro deste ano, em decorrência da falta de oportunidade de trabalho. “Eu trabalhei com um parceiro por 10 anos, e todo mês a gente acabava um serviço e começava outro, nesses últimos anos o negócio foi ficando tão apertado, que a gente precisou desfazer a parceria para sobreviver. Para dar abertura para outros trabalhos, Uber, design, esse trampo rápido assim, não dá para ficar preso no outro” conta Will sobre o motivo do rompimento.

Em 2024, Will e Michel ganharam, novamente, o Prêmio Flávio Gagliardi de Artes Visuais. Foi a 7º vez que a dupla venceu o prêmio e, neste ano, eles puderam expor seus trabalhos por seis cidades da região: Pilar do Sul, Itu, São Roque, Piedade, Salto de Pirapora e Registro. Depois da experiencia de expor pela região, Will reforça sua insatisfação com as políticas públicas sorocabanas, “a nossa cidade é mais industrial, não tem essa preocupação cultural. Perto de cidades menores que eu passei, por exemplo, Piedade tinha um acervo cultural, uma atenção muito mais elevada, e é uma cidade bem menor que Sorocaba. Aqui não tem incentivo nenhum à cultura, acho que algumas cidades aqui perto têm festival de dança e todo mundo se reúne lá, e aqui não tem nenhum movimento grande assim.”

Apesar do reconhecimento momentâneo que a premiação trouxe, o verdadeiro retorno financeiro que gostaria de ter, Will não recebe. Com aproximadamente 70 telas prontas em seu ateliê, o artista se encontra desanimado com o mercado, mas reforça que não abaixa os valores de suas obras. “Sinceramente, se eu fico lá olhando o meu trabalho sendo vendido daquela forma, me desmotiva, eu prefiro ficar aqui em casa, vender de vez em quando, porém eu vendo minha tela por um preço justo, entendeu?”

Em um primeiro momento, pode não parecer, mas a profissão tem seus riscos à saúde. Will comenta que já caiu duas vezes ao usar andaimes para seus trabalhos, além disso, em decorrência dos longos anos em contato constante com os sprays, mesmo usando equipamento de proteção, não deixou de sofrer as consequências que o produto causou, e precisou fazer tratamento de tuberculose, depois de notar sangue escarrando de seu pulmão. Além disso, atualmente, Will faz tratamento para retirada de chumbo do seu corpo, por conta das tintas que utiliza nas telas, “as tintas são vendidas como se não tivessem chumbo na sua composição, mas o meu corpo está lotado, entre um trabalho e outro eu faço tratamento para retirar o chumbo”.

Tela que Will estava finalizando. (Foto: Laura Porto)

Agora o artista sorocabano lida com a ingratidão da própria cidade, onde nasceu e serviu durante toda a vida. Descontente com o atual cenário do grafite no município, Will Ferreira, cobra e incentiva os novos artistas a se posicionarem de forma mais firme em relação ao valor atrelado aos seus trabalhos, para que deixem de aceitar trabalhos sem remuneração ou com pagamento muito mais baixo que o esperado. “Não adianta nada nós segurarmos aqui, para fazer os caras ter consciência, sendo que o outro ali aceita isso.”. Essa crítica ilustra o comportamento de muitos contratantes que desprezam o valor do trabalho dos artistas, e são aceitos por outros grafiteiros que acabam rebaixando seus preços.

Essa é a realidade dos artistas na cidade de Sorocaba. Na visão do autor de Híbrido, é importante que os colegas de profissão se unam na mesma intenção e reivindiquem a valorização do trabalho, não se vendendo e pensando no futuro da sua profissão, com a integridade preservada e remuneração adequada.

Agora, Híbrido, que antes era visto pelas ruas da cidade, conscientizando a população sobre os perigos da modernização e mostrando a realidade de uma sociedade doente, se desprendeu das máquinas e se encontra em uma nova fase, mais espiritualizado, acompanhado de novas cores e significados. O antigo foi enterrado, junto às mágoas e traumas de seu autor, que se sente em uma nova fase da vida, pronto para ressignificar o conceito de alegria.

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